Por Fernanda Canofre
A mesa de convergência era para ser um painel da Economia
Solidária e Democracia Econômica. Mas virou um ato de resistência. Militantes
pedindo pela manutenção da Secretaria Nacional de Economia Solidária – com
risco de extinção no governo Dilma – cobriram parte da plateia com um pano de
cerca de 5 metros, carregando o logo da SENAES. Em coro, mandavam o recado:
“fica Dilma, fica Senaes”.
Entre ativistas e militantes da economia solidária vindos de
diversas partes do Brasil e da América Latina, estavam Paulo Singer, secretário
nacional da SENAES e guru do tema, e Boaventura de Sousa Santos, sociólogo
português, coordenador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de
Coimbra, que possui um grupo de pesquisa especializado no assunto. Ter os dois
na mesma mesa discutindo economia solidária, seria como reunir Pelé e Eusébio
debatendo futebol.
Antes mesmo de que o Secretário pudesse se sentar, em sua
cadeira, o público já estava em pé o aplaudindo. A primeira painelista a falar,
Marta de Souza, do Rio Grande do Norte, confessou ao microfone “que estava
nervosa por estar ao lado de Singer”. A jovem deu seu depoimento pessoal de
como a economia solidária artesã a ajudou a romper os limites que o capital lhe
havia imposto e se tornar independente.
De fato, é difícil entrar num debate sobre alternativas
econômicas que envolva o capital do lado de cima da pirâmide. Alfonso Cortera,
do Peru, também painelista, defendeu que já era hora de assumirmos a economia
solidária como “política de apoio ao desenvolvimento”. “Não pode ser pensada
apenas como alternativa para os pobres”, concluiu.
“Já temos hoje no mundo inteiro um movimento de economia
solidária, ao lado do desgaste do desemprego”, lembrou Singer. Ele apontou
ainda que é na economia social que as gerações mais novas podem deslumbrar um
futuro numa sociedade em crise. “Na Espanha o que mais mata é suicídio. Muitos
jovens não conseguem trabalho sem ser informal, sem ser sem direitos”.
Em sua fala, Singer também convidou o público para entender
a origem histórica do capitalismo.
“Nós não sabemos como constituir uma
economia socialista, porque nunca foi constituída uma até o fim”, declarou.
“Precisamos descobrir na prática como se constrói. Primeiro, eliminar toda a
propriedade privada dos meios de produção. O socialismo que eu vejo como viável
é basicamente socializar todas as terras, os recursos naturais, minerais”.
“Não esqueçam do que fizeram”, diz Boaventura
Joaquim Melo do Banco Palmas, Professores Boa Ventura e Paul Singer. |
Se nunca foi alcançada exatamente a “economia socialista”,
os brasileiros foram pioneiros em encontrar uma economia comunitária. Joaquim
Melo, foi um dos fundadores do primeiro banco comunitário do Brasil, o Banco
Palmas. Criado dentro de uma favela de Fortaleza, Ceará, os sócios do banco
tiveram de lutar durante anos contra o Banco Central para ter sua moeda própria
reconhecida. “Em 2010, o Banco Central se curvou e reconheceu que os bancos comunitários
e as moedas sociais são um direito do povo”, explicou Melo. “O povo tem direito
de escolher onde bota seu dinheiro e onde organiza suas finanças”.
O Banco Palmas se tornou a raiz da Rede Brasileira de Bancos
Comunitários. A rede que começou pequena, hoje já possui 103 bancos, espalhados
em todo o país. O número dobrou de 2011 para cá.
Desde que comunidades, como a do Palmas, passaram a brigar
para ter seus bancos reconhecidos, o Brasil virou um exemplo pioneiro da
economia solidária através do microcrédito. Boaventura de Sousa Santos, que
além de coordenador do Centro de Estudos Sociais, é professor da Faculdade de
Economia da UC, transformou o assunto em uma de suas especialidades. Em 2008, o
CES de Coimbra abriu um grupo de estudos sobre economia solidária – o EcoSol.
Segundo ele, muitos dos casos estudados são brasileiros.
“Estamos tentando levar energia para Portugal e para à
África, não vão vocês esquecer do que fizeram!”, avisou o sociólogo.
A força e as transformações que o modelo realizou no Brasil
nos últimos anos, colocou Boaventura na defesa da Secretaria de Economia
Solidária. “Nós não podemos deixar que perca peso no Brasil a economia
solidária. É muita gente que é atendida por ela”, defendeu ele. Em seguida, o
sociólogo que apoiou Dilma durante as eleições de 2014, falou diretamente à
presidente: “Essa Fórum está contra o golpe, junto à presidente Dilma. Mas que
ela não esqueça: ela tem que ajudar o povo a defendê-la. Quando se der conta
que sua legislação está como [Maurício] Macri, na Argentina, como vai fazer?”.
A deputada federal Maria do Rosário (PT) também chamou a
atenção para a política econômica adotada pelo governo, que classificou como
“injusta”. “Solidários à presidente Dilma, temos que dizer que não aceitamos
essa política econômica”.
Rosário falou em defesa da SENAES, disse que a “crise
econômica é uma crise da acumulação, do capital financeiro” e defendeu uma
“economia gerenciada de forma participativa”. “Com a economia solidária, com
sua implantação, aprofundam as bases de sustentação do governo”, concluiu.
Boaventura defendeu também que a economia solidária não seja
um fim em si, mas um meio de articulação de diversos movimentos de esquerda. “Temos
que alargar nossas alianças. É preciso que a economia solidária não seja uma
luta dos ativistas da economia solidária. É preciso ser das mulheres, dos
indígenas, dos negros, do LGBT, dos camponeses, de todos”, disse.
Veneno na mesa
O Atlas Digital do Sistema Nacional de Informações em
Economia Solidária (SIES), lançado em 2014, registra 19.708 estabelecimentos do
tipo no Brasil. Destes, 10.793 estão na zona rural. Outros 2.058, aparecem como
sendo de zona rural e urbana. Além disso, no ano passado, o governo federal
anunciou repasse de R$ 28,9 bilhões para o Programa Nacional de Fortalecimento
da Agricultura Familiar (Pronaf). Valor 20% maior do que o ano anterior. Ou
seja, no campo a economia solidária parece ter sua raiz ainda melhor
alimentada.
O sociólogo português de Sousa Santos no FSMT. |
E por que, mesmo assim, há pouca expansão deste modelo no
Brasil? “Nós nos últimos 10 ou 15 anos perdemos uma grande oportunidade. Nós
hoje poderíamos ter todas as merendas das escolas produzidas por economia
solidária, por economia camponesa, por economia orgânica. A agroecologia tem
capacidade para isso”, lamentou Boaventura.
Para Boaventura, a reeducação cultural de como vivemos e nos
relacionamos com a alimentação, também é uma pauta da economia solidária. O
professor criticou a indiferença brasileira diante do uso de agrotóxicos. Hoje,
o Brasil é o segundo maior consumidor de agrotóxicos do mundo. E as regiões
norte e nordeste registram maior incidência de câncer do que São Paulo.
“Essa luta é também uma luta da economia solidária. A luta
dos agrotóxicos é vossa porque é essa que vos vai destruir amanhã”, analisou
ele. “O agrotóxico é uma concessão de produtividade, que destrói toda a lógica
democrática, reciprocidade das próprias entidades, do cooperativismo, dos
bancos comunitários, das feiras, que devem qualquer dia ser consideradas
anti-higiênicas, porque não cumprem regras de higiene e, portanto, é melhor ter
o hamburger McDonalds ou qualquer outra comida processada”.
A dois passos de Paulo Singer, o homem que conseguiu permear
o debate sobre alternativas sociais ao capital financeiro, Boaventura – agora
mais otimista do que em sua mesa anterior – deixou seu recado: “A economia
solidária é o núcleo e o embrião de uma sociedade melhor”. Em tempos de tantas
crises, parece ser a única alternativa possível.
No final da mesa, integrantes do grupo de teatro Sem
Hospício, do Hospital São Pedro, e representantes da reforma anti-manicomial
subiram ao palco e leram uma carta-manifesto. Os ativistas protestaram contra a
nomeação de Valencius Wurch como coordenador geral de Saúde Mental, Álcool e
outras Drogas do Ministério da Saúde, pedindo a saída dele. Valencius é
contrário à reforma psiquiátrica brasileira e foi diretor do maior manicômio
privado da América Latina, a Casa de Saúde Dr. Eiras, de Paracambi, Rio de
Janeiro, até este ser fechado por ordem judicial. O motivo seriam a série de
denúncias por violações de direitos humanos ocorridas no local